sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Doña Dominga


Quando se começa, nunca se sabe em que lugar se pode chegar. Hoje comecei novamente. Oito e vinte e quatro da noite. Gosto ácido na boca. Summertime tocando na sala. O som de um alarme de carro vindo da rua, atravessando a janela fechada para o mundo lá de fora. Bebendo sangue e comendo carne de porcos. Arrotando tudo em palavras. Ouço todos os sons ao mesmo tempo: o alarme incessante, o solo de guitarra, minha boca mastigando, e engolindo mais um pouco desse vinho ácido e suave, apesar de seco, e as teclas, uma a uma, atacadas por mãos que se jogam assim, ao nada. Pode ser hoje, mas não creio que será. Enquanto isso, eu. Pessoas lá fora. Indo se divertir. Vivendo suas vidas. Eu aqui, recusando tudo. Por não entender mais nada. Por não esperar mais nada de nada nem de ninguém. Será o fim. Pergunto à Doña Dominga, mas ela permanece de pé, impassível, na minha frente. E me alimenta. Com esse seu sangue rubro. Por ser o que tem a me oferecer no momento. Observo-a, então, calmamente. Como se.

Travamos, enfim, um diálogo. Pergunto: Podes me explicar? Se fiz tudo? Fiz tudo? Há ainda o que fazer? O que tentar? Se não, o que faço aqui? O que faço, se tudo passará, como tudo passa, como eu passaria e passarei? Ao que me responde: Se tu não sabes, não serei eu a te responder. Não passo de uma ser inerte que te dá a fuga de si mesmo quando queres, mesmo sabendo o que essa fuga pode te trazer. Se tu a buscas, não posso fazer nada a não ser concedê-la a ti, que de tão bom grado pagou por ela. O que talvez tu precises é de um espelho, para que possa se ver. O que te disseram hoje pode ter sido duro, mas aquilo não veio de uma pessoa. Veio, isso sim, de um espelho de como te vêem. E você não percebe isso. És redundante, não vês? És ao mesmo tempo a causa e a razão de tudo isso. És o teu próprio princípio e teu próprio fim. O teu a e teu z. És a palavra. Tu não passas de palavras, escritas sobre nada. Em algo que não existe, a não ser para os olhos. E queres que outros também o vejam. Fazes tudo conscientemente, e ainda assim o fazes. E tu sabes a razão. Pergunto-a, novamente: Enrubesces meu pensamento? Turva-o de vermelho? Desse teu sangue? Ou o libertas de si mesmo? Que faço eu aqui? E me responde: Fazes o que fazes. Nada. O que sempre fizestes. E nunca percebestes. Sabes que deves afastar-te de tudo isso. Pois como disse, isso é teu princípio, e da mesma forma será teu fim. Recorres agora a mim. Por não ter mais a quem recorrer. E pergunto: Contudo, vós sois Doña Dominga. Dominga. Vosso nome vem de causas maiores. Dies Dominicus. Sois A Senhora. Devêreis ter uma resposta. E vós sois sangue, rubro, espesso. E sois feminina. Geradora de vida. Não de morte. Ao que me responde, bruscamente: Tu não enxergas, não é? Ouves esta voz na sala? Serás o mesmo. Pois não passas disso. Não passas de algo homem. E nada virá de nada. Do pó só pó virá. E só isso virá de ti. Pó. Névoa nada. Turvo-te o pensamento de vermelho? Não. És tu quem o fazes. Por insistires em querer o que não te é nem te será permitido: a plenitude da leveza. Teu fardo não sairá de teu ombro. De nada te adiantam as palavras. De nada te adiantam as línguas. Elas nada te dirão além do que já sabes. Sabes o que há por saber. Nem todas as línguas do mundo te responderiam. Este é teu fardo. Hás de carregá-lo até teu fim, que está a cada segundo mais próximo. Mas não te preocupes. Hás de partir em sono profundo. Sei. Vês como teu ser está a cada momento mais dormente? É assim que dormirás. E uma hora teu sono será aquele de que não se acorda.

Desisto de ouvi-la por um instante e verifico as horas novamente: oito e cinqüenta e oito. Não sei por que levo este diálogo adiante. Mas não há mais nada a fazer. Não há mais pessoas com quem conversar. Não há mais ninguém ao meu redor. Agora farei disto algo ainda mais forte, para ver a reação de Doña Dominga. Uma gota desse sangue pinga sobre o papel. Sobre a mesa. Serei eu a sangrar? Estou com sono, muito sono. E quero dormir. E não mais acordar para essa realidade. Não sei se outra me espera. Não sei o que fazer. Não há quem ou o quê me ajude. Somente Doña Dominga permanece, impassível, aqui, ao meu lado. Que estarei a fazer? Sei dos riscos. E esta pode ser a última viagem. Mas não será. Não creio. A não ser que Doña Dominga turve-me ainda mais o pensamento. E hoje não há quem me salve de mim mesmo. Pode ser hoje. Há os fins e os meios. Justificam os fins os meios? Nunca se há de saber. Ou será essa só mais uma breve fuga, em lágrimas e sangue? Ligam-me da farmácia. Neste exato momento. Querem alimentar-me de mais drogas. Sustentar esse vício que destruo com outro vício. Vícios que se alimentam uns aos outros. Cabernet Sauvignon, alcalóides, diazepínicos e tals. Assim não há de haver como.

E Doña Dominga permanece ali. Olhando-me. Fixamente. Enche-me o copo. Figuras dançam. And I just to play the game. Take me by the hand. Save me. Mas você não está nem aí. Nem aqui. Quello che accadrà, accadrà. Nothing more than a night stand. It was just what I wanted. But you’re not here. I’m not here. Nobody’s here. Tout est vraiment foutu. There’s no rehab for me. E as palavras tornam-se escassas, lentas. Old vines? O velho sou eu. Envelheço mil anos a cada segundo. O corpo não pode mais agüentar. C’est la fin. Je le reconnais. C’è un dolore che non capisco. Et que je ne peux pas resoudre. Personne ne comprendra, jamais. C’est la fin. La fin de moi. Que insisto em permanecer aqui, sem razão.

Doña Dominga olhando-me, diz: Vês! Acabou-se, porco. Nada. Nothing. Rien. Niente... Tua vida se tornou nada mais do que reticências insistentes. Tu não passas destas reticências, que de nada servem. Durma de uma vez por todas. Todos te abandonaram. Idiota. Fizestes isso. De que vale tudo que és? Nada. Absolutamente nada. Amazing Grace? Quem se importa? Mesmo aqueles hão de esquecer, e tu não passarás de uma lembrança distante. Mostra isto aqui a todos. Deixe que vejam toda tua dor. Pois nada há de fictício aqui. É tudo verdade. O álcool, as drogas, tudo. Estás fudido, como sempre estivestes. Lúcido? Como se não há luz? Lúcifer. Sabes que pelo que fizestes pode não acordar amanhã. Teu sono pode ser aquele de que não se acorda. E qual a razão destas lágrimas? Seu nada! Tu não és nada! Sois pó, e ao pó voltarás, e não falta muito. Teu desespero aumentará a cada dia. E a cada dia eu estarei aqui para alimentá-lo. Estás já louco. Não sabes o que dizes, ou o que escreves. Tu tens uma inteligência admirável, mas te falta o equilíbrio, e é aí que entro. Pois eu, tua Doña Dominga, não sou tua senhora, mas teu refugo, a expressão de tua dor sem fim. Vês a dormência? Try, just a little bit harder, and I’ll be there for you, to see you loose yourself. Toma mais do meu sangue. Toma-o todo para ti. Choras? Vejo tanta graça nisso. Try. Try. I want to see it. I am your Doña Dominga. Estás bêbado, drogado, e podes não acordar amanhã. Não culpes a ninguém. Sois tu o culpado. Fizestes o que fizestes. Agora agüente as conseqüências. Esta vida acabou-se. Babas. Vês! É teu fim. Please, play the game. I want to see it. Maybe. Maybe it’ll be your end. But who cares? Your mother? Ha, she’ll forget after a few years. Nothing that can’t be cured, like her cancer. And don’t ask anyone to come back to you. You know why, unfaithful. Maybe.

O tempo passou. Nove e trinta e dois. Ainda vivo. Ainda escrevo. Com dificuldade. One good man? Não, não passas de um nada. You ain’t much. You ain’t nothing. Você acabou com tudo. Com realidades e possiblidades. E eu acho graça nisso. Era o que eu queria. E consegui. Te ver assim. Desesperado. Sem esperanças. Lutando para dar sentido às palavras. Quem se importa? Tu? Alguém? Não creio. Sabes que se dormir hoje não te acharão por vários dias.

E Doña Dominga se torna cada vez mais distante. Cumpriu seu papel. Deixou-me aqui. Turvo de vermelho. Afasta-se agora. Satisfeita com o que conseguiu até o momento. Nove e quarenta e cinco. E só. Nem uma palavra. Nem um alguém. Culpa minha? Talvez. Eu que sofra as conseqüências. Eu que sofra. Eu que sofra. Summertime novamente. Friends, they turn away... like everybody else. I can always cry. Até que não sobrem mais lágrimas. You’b better save me from myself, because I can’t. I may be here tomorrow, or not. Indeed.

Let’s hope for the best. Whatever it is.

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