sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Ele

Por muito tempo Ele permaneceu em sua casa, trancado. A luz do dia não passou, no decorrer daqueles anos todos, de uma fraca luminosidade que vencia os vidros verdes da janela ao lado. O ar, sempre viciado, sempre insuficiente, alucinava-o. Todavia, tudo, ali, em meio àquele vazio da solidão, bastava-lhe. Recluso. Trancafiado em si mesmo. Sua única realidade, as palavras. As páginas folheadas. Os livros que se acumulavam como se procriassem entre si, empilhados, um sobre os outros, em eterna cópula. Não como o Autodidata. Não lhe interessava tudo. Não lhe interessava nada além de si mesmo. Seu universo girava ao redor do seu próprio eu. O seu eu, nas páginas. Lidas, atente. Não escritas.

Por vários anos viveu assim. Calou-se. Primeiro, dias sem sair. Depois os dias alongaram-se em semanas, e acostumou-se aos poucos à idéia. Assim, as semanas tornaram-se meses. Os meses, anos. Os anos, décadas. As décadas, o atemporal. De tal forma que o que antecedera aquele momento no qual vivia transformara-se em algum tipo de passado épico, distante, de cuja memória só se tem algo lendário, não mais confiável, não mais demonstrável. Tudo tão distante, e diverso.

Toda a casa, de poucos cômodos, sempre trancada. Nada se via do que acontecia lá fora. Nada se via do que acontecia ali dentro. Ele e a casa tornaram-se, aos poucos, uma e só coisa. Organismos simbiontes. Suas necessidades fisiológicas, inexistentes.

O seu dia resumia-se a ler a si mesmo, incessantemente, nos livros que possuía. Em cada letra, acreditava ver uma de suas células. Em cada pensamento expresso, um átimo de seu ser. Sua existência, embora repleta de palavras, não expelia nada. Ele, um buraco negro, que absorvia toda a matéria imaterial ao seu redor. Todo o imaterial do pensamento exposto, virado e revirado para o seu prazer. E, embora buraco negro, todo esse material nunca se extinguia. A mesma página o serviria por vários anos. Tudo, visitado, e revisitado. E de tudo emanava, caudalosamente, o único alimento com o qual se importara até então.

Chegou um momento, entretanto, em que sentiu a necessidade de abrir, Ele mesmo, a porta. Não sabia, porém, o que veria. O que haveria à sua volta. Como respirar outro ar que não aquele. Como ver a luz do dia, sem o vítreo bloqueio da janela. Se agüentaria a força do Sol, e do seu calor, e da sua força, e da sua imponência. Se suportaria o frio e a escuridão da Noite, que segue a todo e qualquer dia. Tudo, uma grande desconfiança. Mas precisava sair. Ali dentro, nunca encontrara a si mesmo. Mesmo passadas todas aquelas décadas. Mesmo depois de tudo ter esvaziado a si próprio. Se não ali, o que buscava precisava encontrar do lado de fora.

Abriu, então, Ele, a porta. Seus olhos arderam com a luz. Teve, entretanto, a impressão de que se acostumaria aos poucos. Aberta a porta, viu, ao contrário do que esperava, o silêncio. Nada mais havia. Tudo, pó. Silêncio. Olhou, assombrado, ao redor, em busca de algo reconhecível. Em busca de outro espírito como o seu. Outro querente. Não. Nada. Alguns passos adiante. Passos débeis. Mãos trêmulas. Boca semi-aberta. Nada. Só o pó. Nem ruínas. O Tempo, não mais. Encontrara-se com o infinito. Quis voltar, mas, olhando para trás, mesmo sua casa sumira. Em lugar de tudo, o pó. Fino, correndo como névoa sobre seus pés. Percebendo então que tudo voltara ao princípio, Ele falou.

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