quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Adelfo

Depois de refletir sobre por onde deveria começar, se pelo meu nome, se por minha aparência, ou por qualquer outra coisa que o valha e que seja de praxe colocar em textos desta natureza decido simplesmente colocar-me sentado num banco, à beira da praia, e isso deve bastar a si mesmo, mas o banco, é preciso dizer, não está virado para a imensidão vazia do mar, tão passível de contemplação em seu movimento incessante, seu trabalho incansável, não posso me colocar contemplando algo tão magnífico porque nada há de mim ali, e por isso coloco-me a olhar para a avenida à minha frente, ornada de belos prédios residenciais, com suas varandas amplas e suas vidraças que emanam luz, opulentas, olhos de apartamentos ocupados por aqueles que provam o seu mérito e que os exibem como troféus da luta ganha, nesta mesma avenida onde pessoas ocupadas vão e vêm nos seus carros, nos seus ônibus, com suas alegrias, com suas paixões, com suas infelicidades, com seus problemas, com suas contas para pagar, com os filhos que não lhes obedecem, com os filhos que ainda não têm, mas que pretendem ter, ou que sabem que nunca terão, ou que não querem ter, ou que tiveram mas foram obrigadas a abandoná-los em um lugar qualquer, ou a se livrar deles antes mesmo que tivessem a chance de respirar este ar misto do gás do escapamento dos veículos e da brisa que vem do mar, isso que me mantém vivo, agora. Talvez fosse melhor se o banco estivesse virado para a imensidão vazia do mar, pois esta imensidão vazia eu poderia preencher como quisesse, com aquilo que me vem à cabeça, com aquilo que pretendo, com o que deixo pra lá, com tudo que me faz ser eu mesmo. Mas o mar é simplesmente uma imensidão vazia que nada tem a ver comigo, já estava lá antes de mim e continuará ali, no seu trabalho incessante, depois que nos formos todos, essa massa tão imensa que eu não posso preenchê-la, e por isso prefiro colocar-me de costas para ela, fitando a avenida e o seu ocupado vai-e-vem que não me nota, porque ele e eu fazemos parte de uma outra imensidão, vazia como o mar, mas vazia de um outro vazio.

E eu aqui, no banco, em meio ao vazio disto tudo, não sou notado pelos viandantes por terem eles outras preocupações, ocupações ainda que saiba que também, talvez, não os notasse, se também eu tivesse minhas ocupações. Na verdade, não há importância aí. O que importa agora é estar aqui no banco, por que o tempo é curto. Importa simplesmente saber que, se olho para os lados, há todo um formigamento inconsciente ao meu redor, que se chama vida. Inconsciente por que não se sabe massa, formigamento. E eu sou parte disso tudo. Sou uma formiga, velha. Então me levanto, e dou um passo em direção a qualquer lugar, porque não importa aonde vou, e caminho à toa, desocupado, despreocupado, pois sei o que será da minha vida nos próximos dias, nos próximos meses, nos próximos anos, se ainda os tiver tão próximos de mim. Agora não importa mais, não, agora meu papel está cumprido e não tenho mais obrigações a não ser esperar pelo dia em que...

Por isso caminho à toa, em direção a qualquer lugar, até que me deparo com uma criança imunda que me olha como se eu representasse para ela alguma esperança. Não deve ter mais do que uns nove ou dez anos, esta mirrada criatura que também caminha à toa, não porque já cumprira seu papel aqui, mas porque não tem papel nenhum a cumprir, é um ser redundante, de aspecto asqueroso, imundo, fétido. Uma criança mulata, ser misto, como quase todas as outras que eu já vi por aqui e por outros lugares onde as encontrei, sempre com o mesmo semblante, com o mesmo olhar opaco, com as mesmas roupas rotas que lhe são grandes demais, talvez herdadas de um irmão mais velho, talvez encontradas pela rua, pelos lixos de que vivem, ou doadas por alguma alma caridosa que pensa poder assim amenizar a dor, se é que tal coisa existe, destes pequenos seres desagradáveis, mas que na verdade esperam da caridade nada mais do que o perdão a si próprios, perdoe-me, senhor, pelo conforto em que vivo, pensam, quando de suas hipócritas filantropias inúteis.

E eis que a criança olha para mim e eu a ouço balbuciar qualquer coisa de incompreensível de tão baixo que falara, temendo uma represália de minha parte, ou talvez usando das artimanhas que aprendera na companhia de outros maltrapilhos que vagam errantes pelas ruas, que dormem pelos cantos, sujos, entorpecidos, sim, talvez tenha sido por isso que esta breve criatura tenha minimizado sua voz, na tentativa de me levar à comoção que lhe renderia algumas moedas, talvez um lanche em algum lugar, e talvez, quem sabe, até mesmo um lugar para morar, mas não, creio que eu já esteja pensando bem demais deste ser imundo, pois sabemos que estes tipos não querem sair das ruas, preferem a promiscuidade do desregramento, seres devassos, porque farejam dinheiro como animais, o dinheiro que lhes comprará a cola, que lhes dará o crack e alguma comida, quem sabe, de que precisam, mas a comida se encontra no lixo, nos restos dos abastados, e se a comida fede, que mal há nisso, pois eles também fedem desde que tomam conhecimento do que é o odor que exalam de si mesmos, o mesmo fedor que é incapaz de reconhecer a si mesmo, felizmente, mas não os entorpecentes, estes não se encontram no lixo, custam caro, por isso não se deve desperdiçar o dinheiro com a comida, algo que se aprende desde cedo.

Peço-lhe então que repita o que disse, não educadamente, mas com um seco o que você disse?, tentando deixar claro que eu não me importava com as suas falsas lamúrias, que já estava farto delas, que já as vira em todas as suas formas disformes, que acreditam poder ludibriar quem quer que seja, ainda mais um velho pois os velhos, sabe-se, têm coração mole, e então o pequeno ser grotesco, com um mesmo olhar opaco, lamuriento, inexpressivo, simplesmente repete o que dissera, que eu não entendera, mas que estava certo do que se tratava, e me pergunta, desta vez um pouco mais alto, se eu poderia lhe dar algum trocado, confirmando assim aquilo que eu pensara, e eu lhe respondo com o olhar, simplesmente o olhar que deveria lhe dizer que a sua miséria não me toca, não me diz respeito, que a sua presença me incomoda, é enfadonha, desnecessária, que a sua existência mesma não passa de um estorvo, que você, criança, é fruto da inconseqüência de pessoas também elas redundantes como você, também elas dispensáveis, que não têm um papel a cumprir nesta imensidão de um outro vazio que não o do mar que está ali, à nossa direita, mas sim daquilo que está à nossa esquerda.

E então penso que seria melhor se não a tivesse notado, talvez fosse melhor que ela não estivesse ali, para que eu continuasse a não ser notado, e para que eu também não a notasse, assim eu poderia escapar e viver na minha dormência de velhice que se completará em breve, mas não, ela permanece ali, imóvel, suplicante, parada na minha frente, exalando seu odor pútrido, e me fazendo perguntar a mim mesmo como algo tão infecto poderia emanar daquilo que deveria ser o amanhã...

[Novembro, 2006. Texto moribundo. Esquecido. Empoeirado. Tiraram-se as teias de aranha e jogou-se de volta no mundo.]

Um comentário:

Camilíssima Furtado disse...

O pior mesmo é quando os miseráveis são os que tudo possuem, inclusive um vazio interior, impossível de ser preenchido...